domingo, 22 de maio de 2011

Entrevista realizada a José Carlos Fernández, no âmbito da obra “A Viagem Iniciática de Hipátia” pela revista Esfinge Digital - Espanha

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1- Uma civilização… É um ser vivo?

Sim, claro, como uma árvore, ou um rio, que às vezes se estanca e quase morre para renascer de novo; ou como uma montanha. Ou melhor ainda, como um ser humano com os seus conglomerados de inumeráveis células, e além da organização e unidade de destino.

Uma civilização nasce sempre como uma semente de almas escolhidas com uma força anímica enorme e forte projecção histórica. Nasce como um impulso espiritual (no sentido mais profundo e menos “religioso” desta palavra) dentro da trama viva de uma cultura e tradição. Cresce buscando a luz do Sol do seu ideal, desenvolve-se vencendo as mil vicissitudes que deve enfrentar, floresce, da sua mensagem de beleza e dos seus frutos ao mundo; envelhece, corrompe-se moralmente na sua debilidade e finalmente morre…para quem sabe voltar a renascer, com outro nome e forma, numa nova terra e debaixo de um céu diferentes. Essa é a história da humanidade, se a observamos com olhos de Filósofo, quando somos capazes de perceber uma ordem natural no aparente caos que supõe a sucessão dos factos passados.

2- No seu romance, reflecte uma época onde os interesses egoístas e materiais se põem à frente dos valores filosóficos e morais. Foi realmente assim? Não é uma forma velada de criticar a nossa época?

São os ciclos da vida, o Sol duma civilização começa a morrer e as sombras crescem. Também Roma morreu porque deixou de outorgar os benefícios da civilização e converteu-se numa sociedade de consumo que devorava os frutos do mar, da terra e dos céus, cada vez mais débil moralmente.

Pelo resto não é necessário criticar a nossa época, basta examinar os interesses que nela primam e a sucessão de acontecimentos. Quando uma civilização cresce e se expande sonha o seu futuro, e para ele trabalha. O presente é um ponto de apoio, nada mais, para dar vida ao seu ideal. Na sua decadência refugia-se em fantasias e não consegue imaginar o que há mais além, trabalha-se para um presente que tudo consome e um futuro que fica órfão.

Seria interessante perguntar às pessoas como imaginam o futuro daqui a 50 ou 100 anos, por exemplo.

3- Além de Hipátia, parece que a protagonista do livro é a “Sabedoria dos Mistérios”, que fala mais do que a primeira. Quem são esses Mistérios? Como conhecê-los se estão ocultos?

As escolas de Mistérios, Maiores ou Menores, foram sempre o coração de toda a forma civilizatória, donde se impulsionava toda a mística e religião, toda a forma artística e política, onde eram gerados os paladinos do seu tempo em todas as áreas de conhecimento e trabalho. Tinham um programa para poder desenvolver, como diz Confúcio, o princípio da Razão Celeste presente no ser humano; ou como diz Platão, abrir os olhos da Alma a um mundo arquetípico. Aqueles que eram educados nestas Escolas reencontravam-se a si mesmos, despertavam ao mais profundo e autêntico da sua verdadeira natureza, conseguiam selar um pacto com seu próprio destino, examinando a vida desde uma dimensão muito superior ao que é comum.

As Escolas de Mistérios eram ao mesmo tempo Universidades, Templos em que se rendia culto à Alma da Natureza e Casas de Fraternidade e vida.

4- Hipátia investigava a luz. O que sabiam os antigos da luz que não sabemos nós, que medimos a sua velocidade?

Medir a sua velocidade, coerência e propriedades ópticas é importante mas talvez não seja tudo. Na Índia Védica também mediram com grande precisão a sua velocidade, ainda que não saibamos como. Talvez os filósofos alexandrinos soubessem mais sobre a natureza e o significado da luz que nós agora. Por exemplo, desde quando se sabe que os seres vivos irradiam luz, não reflectimos só a que provém do Sol? Ou por exemplo, já na Índia e no Tibete se ensinava que o maravilhoso espectáculo de luz das auroras boreais provinha da electricidade (fohat) procedente do Sol que viajava pelo espaço e penetrava pelos pólos da Terra, ou que na quinta essência da luz desaparecem o tempo e o espaço (tal como ensinaram depois Tesla, falando do raio e Einstein na sua Teoria da Relatividade).

5- O que é a Aritmosofía? O Que são os números?

Os números são cristalizações da mente, tudo o que é inteligível é-o através dos números e as sombras geométricas que projectam.

Os grandes matemáticos, como por exemplo um Paul Erdós no século XX falam-nos desta dimensão eterna e pura, real dos números, sempre os mesmos, que nem nascem, nem mudam, nem morrem, mas que trazem o tecido de toda a vida e são o esqueleto de toda a lei da natureza. Segundo Platão regem o tempo (a quem o Filósofo da Academia define como “o número no movimento”) e os seus ciclos, são as Formas Divinas que penetram na caverna do mundo, fazendo o caos inteligível, convertendo-o em Cosmos.

A Aritmosofía, tal como, por exemplo, a ensinou o sacerdote jesuíta Athanasius Kircher busca penetrar na sabedoria destes Números e nas suas propriedades, segundo os ensinamentos do filósofo Porfírio, que dizia que toda a operação no seio da Natureza é a sombra de uma operação numérica e geométrica.

6- A Grande Pirâmide, diz no seu livro, é “o maior tratado matemático jamais escrito pelo homem…a sua antiguidade é de quase cem mil anos” O que é que na pirâmide gera tanta polémica e discussão sobre como e quando foi construída?

Segundo certas tradições herméticas a Grande Pirâmide é muito mais antiga do que se crê, e quando lemos a origem que lhe atribui Heródoto (e em que se baseiam os historiadores) não podemos se não sorrir pela sua ingenuidade.

A Grande Pirâmide não é só a maior obra de engenharia que existe (pela sua magnitude e sobretudo pela sua precisão, e se não, recordemos as propriedades ópticas das pedras calcárias da cobertura), mas sim o maior tratado matemático nunca escrito. Quanto mais evolui a nossa ciência, mais se amplia a nossa compreensão deste mistério inteligível encarnado que é a Grande Pirâmide. Agora, por exemplo, são os engenheiros acústicos quem estão a ficar maravilhados ante as suas propriedades.

7- Hipátia, nas suas viagens, estudou em Heliópolis. Parece que era ao mesmo tempo uma universidade de teologia e de matemática.

Não há referências históricas de que Hipátia estivesse em Phylae ou em Heliópolis, mas é bastante lógico e natural que na sua juventude – e dado o interesse do pai em dar-lhe uma educação excepcional – visitasse os santuários ainda abertos do Nilo, em que tanta sabedoria era zelosamente guardada.

Para a filosofia egípcia Teologia e Matemática são praticamente sinónimos pois os primeiros Deuses são os Números: e por exemplo em Heliópolis a Eneida Divina são os Números de um ao nove, tal como se mostra no Côvado Real de Mênfis que se conserva no Louvre.

Nós usamos os números para governar o mundo, eles faziam-no para fazer inteligível o Mistério, para penetrar nele nestas “barcas-número”, para viver plenamente a realidade e não só através dos sentidos.

8- O seu livro diz: “Se um iniciado chegasse a Alexandria e explicasse os maiores segredos, as pessoas ficariam totalmente decepcionadas”. Que ocorreria se chegasse a Barcelona hoje?

Um iniciado traça conscientemente um círculo ou um triângulo equilátero e toda a sua alma vibra, como um gongo, pois ambos falam da silenciosa presença de um arquétipo, de um mistério. Por exemplo a circunferência é um símbolo da “eternidade dinâmica” sem princípio nem fim, e mesmo Deus não é senão uma circunferência cujo centro está em todas as partes.

E no entanto, isto a nós, pouco nos diz. Talvez não sugira ou nos sussurre algo na alma quando somos capazes de parar a mente e detê-la nesta sublime verdade, mas é um murmúrio que se confunde com a confusão dos nossos pensamentos vulgares e quotidianos.

Um Iniciado, em Alexandria há 1700 anos ou em Barcelona hoje, deveria adaptar a sua compreensão à nossa, ensinar-nos pacientemente o alfabeto que permite a vivência destas sublimes verdades. Isto é em definitivo o grande esforço e a grande paciência das almas gigantes como Platão, Avicena ou Giordano Bruno, ou mesmo de Hipátia. Só que, desta última filósofa não temos nenhum escrito (há eruditos que afirmam que o texto actual sobre as Crónicas de Apolónio de Pérgamo poderiam ser desta filósofa, mas isto é difícil sabê-lo).

9- As duas condições básicas para percorrer a Senda da Sabedoria são “o bom senso e o sentido de humor”, é assim tão simples?

Condições básicas no sentido de “sine qua non”, ou seja, “nunca sem elas”, são a base sem a qual o caminho da Sabedoria se converte num lamaçal em que nos afundamos. Logo vem ele dar um passo e depois outro; e enfrentar-se em situações complexas e trágicas sem perder o sentido comum nem o bom humor…

De todos os modos, é fácil golpear uma pedra com outra e produzir um som, e não tanto dirigir uma orquestra sinfónica, o mesmo sucede com as potências da alma e a inteligência. O sentido comum do animal (comer, reproduzir-se, sobreviver) e a sua felicidade sempre são mais difíceis quando um penetra no invisível dos sentimentos e no labirinto da mente, que de todas as formas, dada a nossa natureza, devemos percorrer.

Além disso, observamos todos os dias em nós mesmos e nos outros, que não é tão fácil manter o bom senso nas pequenas coisas nem nas grandes coisas. Todos sabemos, quando meditamos bem, que primeiro é o Amor ou seja, a integridade da alma com a sua mais pura luminosidade; logo vem a saúde e só depois o dinheiro e os bens materiais: Somos sempre fiéis a esta verdade simples e do mais elementar bom senso, quando pensamos nela?

10- Hipátia pôde ler os manuscritos de Platão, e em Roma foi discípula de Plutarco, parece como uma linha de filósofos que vão transmitindo algo…

A luz existe por toda a parte, mas só o fogo transmite e desperta o fogo adormecido. Esta é uma profunda verdade simbólica: um pode aprender e iluminar-se com os ensinamentos de todos os sábios que o foram no mundo, mas só se acende interiormente aquele que tem esse fogo, pois ninguém pode dar aquilo que não tem. E só esse fogo pode transmutar interiormente. Quando somos empurrados mudamos de posição, mas quando há transmutação há uma mudança profunda, uma mudança de estado de alma: algo que os filósofos da Índia nos seus Upanishads compararam ao passo da obscuridade até à luz ou do sono da vigília ou da morte até à ressurreição, a imortalidade.

11- Que quis dizer Plutarco com os “arquétipos podem ser vividos”?

Quando damos a mão, como toda a alma e sinceridade podemos “viver” nesse gesto o arquétipo da amizade e da dação, com um beijo podemos viver nesse gesto que é um símbolo e um rito, o arquétipo do Amor. A Teurgia antiga, cujos restos, um pouco deformes e sem quase vida já encontramos nos rituais de todas as religiões, era uma Ciência Sagrada e uma Arte que permitia a vivência dos Arquétipos através do rito, e usando, como intermediários os génios e espíritos da Natureza.

12- O seu romance oferece um profundo contraste entre a paz dos sábios e discípulos nos seus templos e o caos da queda do império romano, com a sua violência e corrupção. Não deviam esses sábios ocupar-se do mundo em vez de se dedicarem a abstracções geométricas?

Talvez esse tenha sido o seu erro e a Idade Média precipitou-se mais na obscuridade e no terrível do que o que era necessário. No meio da tormenta, o capitão do navio, mais que fixar o rumo com as estrelas, deve tentar que este se mantenha a flutuar. As Escolas de Filosofia, ao manter-se alheias às poderosas turbulências históricas e sociais geraram um vazio que foi enchendo com o fanatismo religioso mais degradante.

13- Parece que o seu romance, junto ao filme “Ágora” de Amenábar e outros trabalhos muito interessantes que vão focando essa época, necessitam recrear essa etapa da humanidade para dizer algo aos seres humanos do presente. Porquê essa época?

A natureza humana é a mesma, a situação de crise de uma civilização é também muito semelhante, o mesmo recrudescer de todo o tipo de alucinações colectivas (fins do mundo e todo o tipo de profecias desnaturalizadas e fora de enquadramento), fanatismos, miséria física e moral. O Ágora de Alexandria na época de Hipátia é muito semelhante ao momento actual, a primeira crise é sempre de valores, a crise económica – como sucedeu também em Roma – é a que arrasta depois todo o barro.

14- É certo que existiam conhecimentos da Índia ou do Tibete em Alexandria?

Sem dúvida, muitos filósofos e ascetas da Índia ensinaram em Alexandria, eram chamados gimnosofistas. Até a Roma chegaram obras de Confúcio, o grande sábio chinês, e só este pôde ser a via de Alexandria.

15 - “ O prémio designado pela divindade à filosofia é o infortúnio”, porquê? Crê que Hipátia foi feliz ou desgraçada?

Considero, como Séneca, que o sábio é sempre feliz, pois é uma rocha sólida perante os embates do destino. E no entanto, o sábio jamais nega a vida, nem deixa de responder perante a mais pequena das suas vibrações, cada uma delas encontra um eco na sua alma. O ignorante é talvez feliz na sua inconsciência, o sábio na sua estável e poderosa virtude, enquanto que o filósofo é consciente dos seus erros e carências e começa a assumir também os de quem os rodeiam, pois sente-se responsável por eles, como um pai é responsável pelos seus filhos; tampouco pode, sem desmerecer-se ante os seus próprios olhos, refugiar-se na trincheira de crenças preestabelecidas e no cómodo vazio do não pensar. Todo ele fica mais sensível perante as desgraças do mundo, e como diz o tratado místico Voz do Silêncio, é no seio desta dor que nasce a “flor da meia-noite”, a sabedoria que é ao mesmo tempo serena compaixão por todos aqueles que sofrem.

16 – Surpreende a coincidência histórica das personagens, eles sabiam que viviam um tempo triste mas para além disso sabiam que se avizinhava uma idade média, e um renascimento!...

Sim claro, eles mesmos e a sabedoria que levavam como um fogo eram a prova e garantia de um renascimento depois da noite de ignorância e fanatismo da Alta Idade Média.

17 – A “Mestra Hipátia” cria numa amizade baseada na Irmandade de almas e não numa infinidade de caracteres. Como seria isso possível?

A afinidade de caracteres é cómoda ainda que não contribua muito. A Irmandade de almas é a matriz das mais puras vivências, é transparente, deixa pegadas impossíveis de apagar e vai sempre mais além, vence a morte e dá um verdadeiro sentido à vida.

18 – Dedicou o livro à sua Mestra, que é “o que foi Hipátia para os seus discípulos”. Ficaram “Hipátias” no mundo? Ficaram “Platões”, “Socrates” ou “Plutarcos” em algum sítio?

Se não tivessem existido, duvido que pudesse ter escrito este livro. Ele nasceu como uma homenagem e uma prenda de gratidão ante tal caudal de vivências, de generosidade, de bondade, de exemplos morais e de coragem em que se desenvolveu a minha juventude e se tem alimentado e alimenta a minha alma.

Estas Hipatias, Platões e Sócrates são o “sal da vida” e a “luz do mundo”, sem elas a Humanidade estaria órfã... e não, não está, há uma Mão que a bendiz e a protege, há uma Sabedoria que a chama e espera; talvez a história e as duras vicissitudes que estamos a enfrentar marquem o retorno das Escolas de Filosofia...

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