sábado, 15 de outubro de 2011

O retorno dos Filósofos

Há quase sete séculos, analisando o declínio da sociedade islâmica no Al-Andalus, o filósofo da história Ibn Khaldún escrevia que as sociedades se mantinham em pé enquanto se mantivessem os indivíduos que as sustentavam. Os valores humanos, que geram a coesão social, bem como as instituições, irradiam a partir do próprio coração moral do indivíduo, nascem da integridade perante as circunstâncias adversas. Dito de outro modo, a sociedade não é um ente abstracto, mas a soma dos seus indivíduos com as suas forças e debilidades, com as suas virtudes e defeitos. Se o país gasta o que não tem e depois se converte em escravo das suas dívidas, é porque em casa fazemos o mesmo. Dizia Ibn Khaldún que quando as pessoas confiam que as instituições vão solucionar os seus problemas e se tornam dependentes, adictas ao sistema, em vez de oferecerem o melhor de si aos outros, a sociedade torna-se débil e caduca, precipita-se no abismo e na dissolução. Assim o tinha advertido J.F. Kennedy no seu famoso discurso inaugural como presidente dos Estados Unidos: “não perguntem o que o vosso país pode fazer por vocês, mas o que podem vocês fazer por ele”.

Platão dizia que a cidade morre quando é governada pelo interesse e não pelo dever e pela sabedoria. O Filósofo da Academia divide os seres humanos em Ouro, Prata, Bronze e Ferro. Os de Ouro são os sábios e os de Prata os servidores do dever e da honra. Os de Bronze e os de Ferro carecem da verdadeira noção do bem público e atendem aos seus próprios interesses, por mais que os disfarcem. Portanto, carecem de autoridade moral para governar ou ser um exemplo. Como um lobo que se faz passar por cão de guarda não pensa em nada mais do que em devorar o gado e aguarda o momento oportuno para saciar os seus instintos. Protege, por exemplo, como faz uma máfia.

O que sustenta a Cidade (e as sociedades, portanto) é a Justiça e não a lei, como vulgarmente acreditamos. Pois uma lei indevidamente aplicada, injusta ou que é criada ou invocada para favorecer os interesses privados gerando situações claramente injustas, deixa de ser um elemento ordenador da sociedade. Pelo contrário, destrói-a.

As leis, por mais utopicamente perfeitas que sejam ou pareçam, aplicadas de forma injusta, fazem com que os desapossados e inocentes, as vítimas, clamem ao céu, pois todo o ser humano, se não se tiver convertido num monstro amoral, tem uma noção instintiva do que é justo ou não.

As leis ao serviço dos poderosos e injustos convertem-se em látegos e instrumentos de tortura de corpos e almas, massificando os cidadãos até os converter em simples despojos, sem uma verdadeira alegria de viver, sem discernimento, nem princípios, sonhos ou esperanças, a não ser a esperança de uma morte libertadora.

Na filosofia da Índia, a palavra Dharma significa Lei (mas Lei verdadeira, não as imitações humanas), Justiça, Dever, Verdade, Caminho. E a raiz etimológica desta palavra sânscrita é “dhr”, que significa sustentar. É a Ordem-Verdade-Justiça que sustenta o mundo e as sociedades humanas. É como um fogo na noite, que atrai todos os olhares, chamando-nos, que dá calor, abrigo e protecção contra as alimárias.

Se a cidade morre, se a sociedade se dissolve, se nos sentimos prisioneiros da solidão da alma, da angústia e do desespero é porque o ser humano necessita reconhecer o seu próximo como irmão, à luz destas verdades e destes valores, solidariamente unido a ele graças à Justiça. Pois, como dizia Aristóteles, esta é a natureza do ser humano, formar “Cidades” onde reinem a Concórdia, a Alegria, o Amor, a Justiça e o Trabalho, o Valor e a Amizade, a Pureza e a Harmonia. Formar um núcleo em redor do centro, em torno do fogo e à luz destes Valores Eternos, e criar instituições cujas linhas de força e resistência sejam esses mesmos valores.

Se examinamos o mundo com os olhos da alma, apercebemo-nos de que este é um século de trevas, a injustiça passeia-se insolente pelas cidades e aldeias e entre as ruínas da alma humana; e é senhora em todos os âmbitos e cenários em que nos encontremos. A prova disso é o descontentamento cada vez maior que amargura as horas de vida e a falta de sentido da maior parte de tudo o que fazemos.

Mas o Relógio da História marca o retorno dos Filósofos, das almas de Ouro e de Prata, dos apaixonados pela Sabedoria e, portanto, servidores daqueles Valores Eternos que fazem com que o ser humano mantenha a sua dignidade em pé, no meio das ruínas do seu tempo, para elevar na noite a sua tocha de Ideais e Sonhos ao alto, convocando o que nos une a TODOS os seres humanos e afastando as sombras do medo e da ignorância que nos separa e massifica.

José Carlos Fernández
Director da Nova Acrópole Portugal

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Orfeu

Como se agitam no imenso universo, como se amontoam e se procuram essas inúmeras almas que brotam da grande Alma do mundo! Elas vão de um planeta a outro e choram no abismo da pátria perdida… São as tuas lágrimas, Dionísio!… Oh, Grande Espírito!... Oh, Libertador!.... Faz que as tuas filhas regressem para o teu Seio de Luz

Fragmento órfico



Num período indefinido – situado pela historiografia académica ao redor do séc. VIII a. C. e por certas tradições esotéricas no 3º milénio a. C. – aparece Orfeu, o cantor místico, filho, segundo a mitologia grega, da musa Calíope. Do mesmo modo que, antes, Zoroastro, Hermes Trismegisto e Vyasa, e depois, Buda e o próprio Cristo, Orfeu é considerado um avatar, quer dizer, uma «encarnação divina», um dos grandes mestres e renovadores da alma humana, à volta dos quais os discípulos edificam religiões inspiradas na mensagem destes filhos do Céu.
Diz a lenda que nasceu numa Grécia, na qual, tanto os grupos étnicos protogregos de origem atlante como as migrações asiáticas tinha sido destruídas e estavam em degradação chegando a um estado semi-selvagem. Era um tempo obscuro, caótico, de culto à força física e aos gênio inferiores da Natureza, um tempo sem moral, no qual a sedução sexual estava convertida no único impulso de vida. Como escreveu Jorge Angel Livraga:

«A feitiçaria e os cultos femininos impuseram-se paulatinamente e os últimos defensores da pureza e do altruísmo foram exterminados.
É neste quadro que aparece Orfeu, resplandecente de beleza física e moral, canalizando a energia da sabedoria e do verdadeiro amor. O misticismo era a sua característica e o amor sua radiante vestimenta.
Foi relacionado, miticamente, com Eurídice, a amada precipitada aos infernos do abismo. Tal como a Innana suméria e a Perséfone da Grécia clássica, era a representação da alma humana caída nas cavernas da matéria e dos esforços da consciência para unir-se misticamente a ela, resgatando-a para o mundo luminoso que lhe é natural. Orfeu, ao fim de mil peripécias, nas quais, como todo o Homem-Deus baixa por três vezes ao Submundo, morrendo no final despedaçado pelo povo que o rejeita. Logo, ascende ao céu onde aguarda pela divina Eurídice.
Misticamente, a sua mensagem chegou-nos de uma forma indirecta mas estranhamente poderosa, pois devido a uma espécie de ‘ensaio para o futuro’ – efectuado na Grécia antiga por quem impulsiona a evolução do Homem – que foi potenciado através das escolas artísticas e filosóficas que influenciaram a humanidade nos últimos cinco milénios, onde aconteceram mudanças fundamentais para a Humanidade. A, hoje denominada mitologia grega, na sua totalidade, não é mais do que um monte de ruínas da religião órfica. Esta ensinou ao mundo que existia uma deidade trina: um Pai Celeste, uma Mão Celeste e um Filho de ambos, simbolizado pelo sol visível, e entre Eles e os humanos deu a conhecer uma imensa genealogia de deuses, semi-deuses e heróis. Na sua faceta esotérica, Orfeu foi o Grande Mestre, o fundador dos mistérios órficos, que como uma continuação mágica dos egípcios, ganharam em beleza e flexibilidade, ainda que jamais alcançando o conhecimento destes.
Os fiéis imaginaram o Mestre como um belíssimo jovem tocando a lira das sete cordas de ouro – símbolo do Espírito fazendo música com as suas sete vestimentas purificadas – emitindo música, imagem humana da Harmonia Universal Absoluta.»

Em Elêusis, célebre pelos seus mistérios, cantava-se este hino órfico, através do qual, podemos constatar a «consciência monoteísta» que todos os iniciados da Antiguidade possuíam: «Contempla a natureza divina, ilumina o teu entendimento, domina o coração, caminha pelas vias da justiça. Tem sempre perante a tua visão o Deus do Céu. Ele é o Único. Existe por si mesmo e todos os outros seres derivam d’Ele e por Ele estão sustidos. Nenhum mortal jamais o viu, mas Ele tudo vê.»


HINO ÓRFICO A ZEUS

Zeus foi o primeiro e o último, o princípio e o meio. D’Ele provêm todas as coisas. Zeus foi homem e virgem imortal. Zeus é chama de fogo, a fonte do mar. Zeus é o Sol e a Lua. Zeus é Rei. Ele, só, criou todas as coisas. É uma força, um deus, grande princípio de tudo. Um único corpo excelente que abraça todos os seres, fogo, água, terra, éter, noite, dia e Métis, a primeira criadora e o corpo sedutor. Todos estes seres estão contidos no imenso corpo de Zeus.


HINO ÓRFICO À NATUREZA

Natureza, mãe divina universal, de tantas formas mãe, celeste, venerável, espírito multicriador, rainha que indomada tudo dominas, tudo governas, brilhas em todo o lugar, omnipotente, venerada eternamente, divindade superior a todas, indestrutível, primogénita, antiquíssima… comum a todos, solitário e incomunicável, pai de ti própria sem pai, que com força varonil produzes tudo, tudo sabes, tudo ofertas, ama de leite e rainha de tudo, fecunda produtora de tudo quanto cresce, dissolvedora de tudo quanto madura, verdadeiro pai e mãe, ama de leite e sustentação de todas as coisas.



José Carlos Fernández
Director Nacional da Nova Acrópole

domingo, 22 de maio de 2011

Entrevista realizada a José Carlos Fernández, no âmbito da obra “A Viagem Iniciática de Hipátia” pela revista Esfinge Digital - Espanha

http://www.revistaesfinge.com

1- Uma civilização… É um ser vivo?

Sim, claro, como uma árvore, ou um rio, que às vezes se estanca e quase morre para renascer de novo; ou como uma montanha. Ou melhor ainda, como um ser humano com os seus conglomerados de inumeráveis células, e além da organização e unidade de destino.

Uma civilização nasce sempre como uma semente de almas escolhidas com uma força anímica enorme e forte projecção histórica. Nasce como um impulso espiritual (no sentido mais profundo e menos “religioso” desta palavra) dentro da trama viva de uma cultura e tradição. Cresce buscando a luz do Sol do seu ideal, desenvolve-se vencendo as mil vicissitudes que deve enfrentar, floresce, da sua mensagem de beleza e dos seus frutos ao mundo; envelhece, corrompe-se moralmente na sua debilidade e finalmente morre…para quem sabe voltar a renascer, com outro nome e forma, numa nova terra e debaixo de um céu diferentes. Essa é a história da humanidade, se a observamos com olhos de Filósofo, quando somos capazes de perceber uma ordem natural no aparente caos que supõe a sucessão dos factos passados.

2- No seu romance, reflecte uma época onde os interesses egoístas e materiais se põem à frente dos valores filosóficos e morais. Foi realmente assim? Não é uma forma velada de criticar a nossa época?

São os ciclos da vida, o Sol duma civilização começa a morrer e as sombras crescem. Também Roma morreu porque deixou de outorgar os benefícios da civilização e converteu-se numa sociedade de consumo que devorava os frutos do mar, da terra e dos céus, cada vez mais débil moralmente.

Pelo resto não é necessário criticar a nossa época, basta examinar os interesses que nela primam e a sucessão de acontecimentos. Quando uma civilização cresce e se expande sonha o seu futuro, e para ele trabalha. O presente é um ponto de apoio, nada mais, para dar vida ao seu ideal. Na sua decadência refugia-se em fantasias e não consegue imaginar o que há mais além, trabalha-se para um presente que tudo consome e um futuro que fica órfão.

Seria interessante perguntar às pessoas como imaginam o futuro daqui a 50 ou 100 anos, por exemplo.

3- Além de Hipátia, parece que a protagonista do livro é a “Sabedoria dos Mistérios”, que fala mais do que a primeira. Quem são esses Mistérios? Como conhecê-los se estão ocultos?

As escolas de Mistérios, Maiores ou Menores, foram sempre o coração de toda a forma civilizatória, donde se impulsionava toda a mística e religião, toda a forma artística e política, onde eram gerados os paladinos do seu tempo em todas as áreas de conhecimento e trabalho. Tinham um programa para poder desenvolver, como diz Confúcio, o princípio da Razão Celeste presente no ser humano; ou como diz Platão, abrir os olhos da Alma a um mundo arquetípico. Aqueles que eram educados nestas Escolas reencontravam-se a si mesmos, despertavam ao mais profundo e autêntico da sua verdadeira natureza, conseguiam selar um pacto com seu próprio destino, examinando a vida desde uma dimensão muito superior ao que é comum.

As Escolas de Mistérios eram ao mesmo tempo Universidades, Templos em que se rendia culto à Alma da Natureza e Casas de Fraternidade e vida.

4- Hipátia investigava a luz. O que sabiam os antigos da luz que não sabemos nós, que medimos a sua velocidade?

Medir a sua velocidade, coerência e propriedades ópticas é importante mas talvez não seja tudo. Na Índia Védica também mediram com grande precisão a sua velocidade, ainda que não saibamos como. Talvez os filósofos alexandrinos soubessem mais sobre a natureza e o significado da luz que nós agora. Por exemplo, desde quando se sabe que os seres vivos irradiam luz, não reflectimos só a que provém do Sol? Ou por exemplo, já na Índia e no Tibete se ensinava que o maravilhoso espectáculo de luz das auroras boreais provinha da electricidade (fohat) procedente do Sol que viajava pelo espaço e penetrava pelos pólos da Terra, ou que na quinta essência da luz desaparecem o tempo e o espaço (tal como ensinaram depois Tesla, falando do raio e Einstein na sua Teoria da Relatividade).

5- O que é a Aritmosofía? O Que são os números?

Os números são cristalizações da mente, tudo o que é inteligível é-o através dos números e as sombras geométricas que projectam.

Os grandes matemáticos, como por exemplo um Paul Erdós no século XX falam-nos desta dimensão eterna e pura, real dos números, sempre os mesmos, que nem nascem, nem mudam, nem morrem, mas que trazem o tecido de toda a vida e são o esqueleto de toda a lei da natureza. Segundo Platão regem o tempo (a quem o Filósofo da Academia define como “o número no movimento”) e os seus ciclos, são as Formas Divinas que penetram na caverna do mundo, fazendo o caos inteligível, convertendo-o em Cosmos.

A Aritmosofía, tal como, por exemplo, a ensinou o sacerdote jesuíta Athanasius Kircher busca penetrar na sabedoria destes Números e nas suas propriedades, segundo os ensinamentos do filósofo Porfírio, que dizia que toda a operação no seio da Natureza é a sombra de uma operação numérica e geométrica.

6- A Grande Pirâmide, diz no seu livro, é “o maior tratado matemático jamais escrito pelo homem…a sua antiguidade é de quase cem mil anos” O que é que na pirâmide gera tanta polémica e discussão sobre como e quando foi construída?

Segundo certas tradições herméticas a Grande Pirâmide é muito mais antiga do que se crê, e quando lemos a origem que lhe atribui Heródoto (e em que se baseiam os historiadores) não podemos se não sorrir pela sua ingenuidade.

A Grande Pirâmide não é só a maior obra de engenharia que existe (pela sua magnitude e sobretudo pela sua precisão, e se não, recordemos as propriedades ópticas das pedras calcárias da cobertura), mas sim o maior tratado matemático nunca escrito. Quanto mais evolui a nossa ciência, mais se amplia a nossa compreensão deste mistério inteligível encarnado que é a Grande Pirâmide. Agora, por exemplo, são os engenheiros acústicos quem estão a ficar maravilhados ante as suas propriedades.

7- Hipátia, nas suas viagens, estudou em Heliópolis. Parece que era ao mesmo tempo uma universidade de teologia e de matemática.

Não há referências históricas de que Hipátia estivesse em Phylae ou em Heliópolis, mas é bastante lógico e natural que na sua juventude – e dado o interesse do pai em dar-lhe uma educação excepcional – visitasse os santuários ainda abertos do Nilo, em que tanta sabedoria era zelosamente guardada.

Para a filosofia egípcia Teologia e Matemática são praticamente sinónimos pois os primeiros Deuses são os Números: e por exemplo em Heliópolis a Eneida Divina são os Números de um ao nove, tal como se mostra no Côvado Real de Mênfis que se conserva no Louvre.

Nós usamos os números para governar o mundo, eles faziam-no para fazer inteligível o Mistério, para penetrar nele nestas “barcas-número”, para viver plenamente a realidade e não só através dos sentidos.

8- O seu livro diz: “Se um iniciado chegasse a Alexandria e explicasse os maiores segredos, as pessoas ficariam totalmente decepcionadas”. Que ocorreria se chegasse a Barcelona hoje?

Um iniciado traça conscientemente um círculo ou um triângulo equilátero e toda a sua alma vibra, como um gongo, pois ambos falam da silenciosa presença de um arquétipo, de um mistério. Por exemplo a circunferência é um símbolo da “eternidade dinâmica” sem princípio nem fim, e mesmo Deus não é senão uma circunferência cujo centro está em todas as partes.

E no entanto, isto a nós, pouco nos diz. Talvez não sugira ou nos sussurre algo na alma quando somos capazes de parar a mente e detê-la nesta sublime verdade, mas é um murmúrio que se confunde com a confusão dos nossos pensamentos vulgares e quotidianos.

Um Iniciado, em Alexandria há 1700 anos ou em Barcelona hoje, deveria adaptar a sua compreensão à nossa, ensinar-nos pacientemente o alfabeto que permite a vivência destas sublimes verdades. Isto é em definitivo o grande esforço e a grande paciência das almas gigantes como Platão, Avicena ou Giordano Bruno, ou mesmo de Hipátia. Só que, desta última filósofa não temos nenhum escrito (há eruditos que afirmam que o texto actual sobre as Crónicas de Apolónio de Pérgamo poderiam ser desta filósofa, mas isto é difícil sabê-lo).

9- As duas condições básicas para percorrer a Senda da Sabedoria são “o bom senso e o sentido de humor”, é assim tão simples?

Condições básicas no sentido de “sine qua non”, ou seja, “nunca sem elas”, são a base sem a qual o caminho da Sabedoria se converte num lamaçal em que nos afundamos. Logo vem ele dar um passo e depois outro; e enfrentar-se em situações complexas e trágicas sem perder o sentido comum nem o bom humor…

De todos os modos, é fácil golpear uma pedra com outra e produzir um som, e não tanto dirigir uma orquestra sinfónica, o mesmo sucede com as potências da alma e a inteligência. O sentido comum do animal (comer, reproduzir-se, sobreviver) e a sua felicidade sempre são mais difíceis quando um penetra no invisível dos sentimentos e no labirinto da mente, que de todas as formas, dada a nossa natureza, devemos percorrer.

Além disso, observamos todos os dias em nós mesmos e nos outros, que não é tão fácil manter o bom senso nas pequenas coisas nem nas grandes coisas. Todos sabemos, quando meditamos bem, que primeiro é o Amor ou seja, a integridade da alma com a sua mais pura luminosidade; logo vem a saúde e só depois o dinheiro e os bens materiais: Somos sempre fiéis a esta verdade simples e do mais elementar bom senso, quando pensamos nela?

10- Hipátia pôde ler os manuscritos de Platão, e em Roma foi discípula de Plutarco, parece como uma linha de filósofos que vão transmitindo algo…

A luz existe por toda a parte, mas só o fogo transmite e desperta o fogo adormecido. Esta é uma profunda verdade simbólica: um pode aprender e iluminar-se com os ensinamentos de todos os sábios que o foram no mundo, mas só se acende interiormente aquele que tem esse fogo, pois ninguém pode dar aquilo que não tem. E só esse fogo pode transmutar interiormente. Quando somos empurrados mudamos de posição, mas quando há transmutação há uma mudança profunda, uma mudança de estado de alma: algo que os filósofos da Índia nos seus Upanishads compararam ao passo da obscuridade até à luz ou do sono da vigília ou da morte até à ressurreição, a imortalidade.

11- Que quis dizer Plutarco com os “arquétipos podem ser vividos”?

Quando damos a mão, como toda a alma e sinceridade podemos “viver” nesse gesto o arquétipo da amizade e da dação, com um beijo podemos viver nesse gesto que é um símbolo e um rito, o arquétipo do Amor. A Teurgia antiga, cujos restos, um pouco deformes e sem quase vida já encontramos nos rituais de todas as religiões, era uma Ciência Sagrada e uma Arte que permitia a vivência dos Arquétipos através do rito, e usando, como intermediários os génios e espíritos da Natureza.

12- O seu romance oferece um profundo contraste entre a paz dos sábios e discípulos nos seus templos e o caos da queda do império romano, com a sua violência e corrupção. Não deviam esses sábios ocupar-se do mundo em vez de se dedicarem a abstracções geométricas?

Talvez esse tenha sido o seu erro e a Idade Média precipitou-se mais na obscuridade e no terrível do que o que era necessário. No meio da tormenta, o capitão do navio, mais que fixar o rumo com as estrelas, deve tentar que este se mantenha a flutuar. As Escolas de Filosofia, ao manter-se alheias às poderosas turbulências históricas e sociais geraram um vazio que foi enchendo com o fanatismo religioso mais degradante.

13- Parece que o seu romance, junto ao filme “Ágora” de Amenábar e outros trabalhos muito interessantes que vão focando essa época, necessitam recrear essa etapa da humanidade para dizer algo aos seres humanos do presente. Porquê essa época?

A natureza humana é a mesma, a situação de crise de uma civilização é também muito semelhante, o mesmo recrudescer de todo o tipo de alucinações colectivas (fins do mundo e todo o tipo de profecias desnaturalizadas e fora de enquadramento), fanatismos, miséria física e moral. O Ágora de Alexandria na época de Hipátia é muito semelhante ao momento actual, a primeira crise é sempre de valores, a crise económica – como sucedeu também em Roma – é a que arrasta depois todo o barro.

14- É certo que existiam conhecimentos da Índia ou do Tibete em Alexandria?

Sem dúvida, muitos filósofos e ascetas da Índia ensinaram em Alexandria, eram chamados gimnosofistas. Até a Roma chegaram obras de Confúcio, o grande sábio chinês, e só este pôde ser a via de Alexandria.

15 - “ O prémio designado pela divindade à filosofia é o infortúnio”, porquê? Crê que Hipátia foi feliz ou desgraçada?

Considero, como Séneca, que o sábio é sempre feliz, pois é uma rocha sólida perante os embates do destino. E no entanto, o sábio jamais nega a vida, nem deixa de responder perante a mais pequena das suas vibrações, cada uma delas encontra um eco na sua alma. O ignorante é talvez feliz na sua inconsciência, o sábio na sua estável e poderosa virtude, enquanto que o filósofo é consciente dos seus erros e carências e começa a assumir também os de quem os rodeiam, pois sente-se responsável por eles, como um pai é responsável pelos seus filhos; tampouco pode, sem desmerecer-se ante os seus próprios olhos, refugiar-se na trincheira de crenças preestabelecidas e no cómodo vazio do não pensar. Todo ele fica mais sensível perante as desgraças do mundo, e como diz o tratado místico Voz do Silêncio, é no seio desta dor que nasce a “flor da meia-noite”, a sabedoria que é ao mesmo tempo serena compaixão por todos aqueles que sofrem.

16 – Surpreende a coincidência histórica das personagens, eles sabiam que viviam um tempo triste mas para além disso sabiam que se avizinhava uma idade média, e um renascimento!...

Sim claro, eles mesmos e a sabedoria que levavam como um fogo eram a prova e garantia de um renascimento depois da noite de ignorância e fanatismo da Alta Idade Média.

17 – A “Mestra Hipátia” cria numa amizade baseada na Irmandade de almas e não numa infinidade de caracteres. Como seria isso possível?

A afinidade de caracteres é cómoda ainda que não contribua muito. A Irmandade de almas é a matriz das mais puras vivências, é transparente, deixa pegadas impossíveis de apagar e vai sempre mais além, vence a morte e dá um verdadeiro sentido à vida.

18 – Dedicou o livro à sua Mestra, que é “o que foi Hipátia para os seus discípulos”. Ficaram “Hipátias” no mundo? Ficaram “Platões”, “Socrates” ou “Plutarcos” em algum sítio?

Se não tivessem existido, duvido que pudesse ter escrito este livro. Ele nasceu como uma homenagem e uma prenda de gratidão ante tal caudal de vivências, de generosidade, de bondade, de exemplos morais e de coragem em que se desenvolveu a minha juventude e se tem alimentado e alimenta a minha alma.

Estas Hipatias, Platões e Sócrates são o “sal da vida” e a “luz do mundo”, sem elas a Humanidade estaria órfã... e não, não está, há uma Mão que a bendiz e a protege, há uma Sabedoria que a chama e espera; talvez a história e as duras vicissitudes que estamos a enfrentar marquem o retorno das Escolas de Filosofia...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Novidade Editorial:

FLORBELA
ESPANCA

A Vida e a Alma
de uma Poetisa


José Carlos Fernández



«Ecos longínquos de ondas... de universos...
Ecos de um mundo... de um distante Além,
De onde eu trouxe a magia dos meus versos!»

In Florbela Espanca, «Sou eu!» - Charneca em Flor

Nestas páginas, o leitor encontrará um retrato da vida e da alma da nossa maior poetisa portuguesa. As cartas, o seu Diário, os contos que ela escreveu, os acontecimentos que viveu, factos objectivos na teia do mundo, permitem-nos conhecer melhor esta inspirada artista da palavra, Florbela Espanca. E, ainda, penetrar no labirinto e no jardim encantado da suas íntimas vivências e imaginação: Claustro de Saudade e Beleza do qual nunca sairemos iguais a quando entramos. Pois Ela reina nele como puro símbolo e sacerdotisa do Eterno Feminino, nesse Amor inextinguível por tudo e todos, que converteu nas jóias alquímicas e transfiguradoras de seus poemas.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Porque estudamos filosofia?


Todos os que colaboramos nesta projecto, e muitos dos seus leitores, estudamos Filosofia na Associação Cultural Nova Acrópole. Todos queremos tornar próprio o lema que figurava no frontispício do Templo do Deus da Harmonia, Apolo, na cidade grega de Delfos: Conhece-te a ti mesmo. Lema que Sócrates e a Filosofia Grega divulgaram mas que afirma, na verdade, a tendência natural da alma uma vez que esta desperta a vida. Como dizia o sábio chinês Confúcio, existe um principio da Razão Celeste presente na alma humana e este quer abrir-se à Verdade como um lótus se abre à luz do Sol, depois de ultrapassar o meio liquido e lamacento em que vive. Os Egípcios chamaram a isto a Abertura do Coração e é quem sabe, o melhor símbolo da natureza filosófica da alma humana.

A verdadeira Filosofia decifra, graças à analogia, a lógica da natureza e vê no ser humano um reflexo desta mesma natureza e do Deus que a rege.

Porque Filosofia é amor à Sabedoria e não acumulação de conhecimentos, é consciência de unidade, percepção essencial das leis da natureza e da vida. É, como diria Platão, a música que se faz com a alma quando esta se encontra no seu estado de tensão natural, quando é fiel à sua própria natureza, quando não persegue nada alheio a si mesma. Ou como ensinava o professor Livraga, Filosofia é a harmonia de meios sempre viva na alma da natureza e que o ser humano pode perceber com o fogo da Razão Celeste.

Este Fogo espiritual é o que nos eleva acima da condição animal, o que vivifica os nossos sonhos mais belos e realizações, o que nos dá a capacidade de criar, de vencer as dificuldades “humanamente”, ou seja, de um modo digno e respeitando os valores morais. O mesmo Fogo que menciona o filme “A Estrada” realizado por John Hillcoat baseado no romance com o mesmo título de Cormac Mcarthy e vencedor do prémio Pullitzer de ficção. È o que diferencia o humano do humanóide, ou seja, a besta cruel e astuta sem qualquer tipo de valores nem princípios morais. Como bem ensina o pai que guia o seu filho por essa “última estrada” de um mundo em ruínas, há que preservar o fogo, o valor profundo do ser humano, o sentido inato de justiça e do dever ser e fazer.

Muitas vezes as sociedades preservam sob pressão externa e penal estes valores e regras de convivência social, mas o que sucede quando as sociedades se desmoronam, como tantas vezes podemos presenciar na história? Então, estão aqueles que cedem ao instinto da mais básica sobrevivência, ao medo ou aos desejos de poder e crueldade sem qualquer freio, e os que têm como o mais apreciado dos seus tesouros, a sua própria essência, a chama da sua liberdade interior, ou seja, a chama da justiça, da natureza humana que nos diferencia das bestas. Pois bem, esse Fogo é o Fogo dos Filósofos, o amor e fidelidade à verdade, a chama do idealismo, a luz da inteligência, o reino da transformação incessante e da busca de perfeição.

Porque estudamos Filosofia?

Para aprender a ler no Livro da Vida e aprender as Leis que a regem. Para nos submergirmos no mistério da Alma humana, entender ou então, intuir porque estamos aqui, de onde vimos, para onde vamos. Para nos conhecermos a nós mesmos e não sermos escravos dos nossos medos e desejos e de desejos ou medos dos outros. Para penetrar na alma de todas as tarefas

domingo, 23 de janeiro de 2011

Sejamos honestos

Um sábio hindu afirmou que viver é criar, transformar-se e triunfar. A vida exige-nos triunfar, mas não ao preço de perdermo-nos a nós mesmos, não ao preço de entregar a alma à troca, ou seja, de perdermos a honestidade.

O contrário da honestidade é a corrupção, a mais grave doença da alma, pois com ela perde-se a verdadeira natureza humana e no espaço desocupado entra a besta astuta e sem escrúpulos, para quem os outros se convertem em meios e deixam de ser fins em si mesmos. Essa besta é o egoísmo, o medo e a soberba que vivem entre as nossas próprias sombras, escondidos na escuridão, esperando uma nova vítima, esperando devorar o melhor de nós mesmos, os nossos valores morais, os nossos sonhos e ideais, a nossa honestidade.

Árduo assunto a honestidade. É como uma jóia de puríssimo resplendor que devemos manter limpa e intacta, seja qual for o preço a pagar. Na filosofia egípcia é a pena da Deusa MAAT – a Ordem, Verdade e Justiça – que governa o universo, e se o coração pesa mais do que ela, sentimos que somos devorados pela vida e tornamo-nos rígidos, duros e impiedosos.

A honestidade é o resplendor da alma, a beleza interior, a esperança do mundo, pois um mundo sem honestidade caminha inexoravelmente para a destruição.

Falta honestidade e qualquer ser humano se converte no nosso potencial inimigo, no nosso futuro predador ou vítima. Aquele que perde a honestidade perde tudo, e é tão fácil perdê-la num mundo onde o dinheiro é a medida de todas as coisas! E por detrás desse dinheiro está, muitas vezes, a sede da sensação sem fim, como mil peixes com a boca aberta pedindo comida, o desejo imoderado de prazer e poder, a falta de peso moral.

Um político que busca a honestidade para atrair votos já está corrupto. A honestidade não é um meio para alcançar os nossos fins egoístas, é a natureza mais íntima do ser humano.

Cícero diz que a honestidade leva necessariamente à felicidade, por muito esforçado e difícil que seja protegê-la; a perda de honestidade leva à atrofia interior, à morte da alma. Não há paz para quem por medo ou avidez entregou o melhor de si como moeda de troca.

Aristóteles dizia que virtude, ou excelência absoluta, é a que tem por finalidade a beleza da alma e a honestidade.

Até o famoso treinador português, José Mourinho, hoje treinador do Real Madrid, numa entrevista ao “El País”, de 23 de Agosto, quando lhe perguntaram: “que aprendeu do seu pai?”, responde: “a honestidade”. E continua: “ a honestidade é o mais importante de um treinador e, quem sabe, de um homem (...) Para ser um homem, e para passá-lo ao futebol, para ser um líder, porque um treinador é um líder, parece-me que a honestidade é o mais importante(...) Cometerei erros nas minhas decisões, nas minhas análises, mas guardarei o máximo de honestidade com os meus jogadores. Nunca lhes chegará uma decisão ou uma critica pela boca de outra pessoa.”

A honestidade é o espelho da alma que, quando está puro, e, para além disso, é limpo de prejuízos e artifícios mentais, mostra-nos a alma de todas as coisas, a sua vida interior, os segredos mais íntimos da natureza; e quando se perde, converte-se numa boca escura e insaciável, que tudo arrasta à sua passagem.

A honestidade é a água pura das relações humanas e a única que dá valor às nossas palavras e actos. Quando a misturamos com o interesse próprio, é como quando derramamos tinta ou veneno à água que bebemos. Isso é referido na obra mística e literária, Voz do Silêncio: as puras águas de vida interna, puras e cristalinas não podem misturar-se com as correntes lamacentas da tempestuosa monção.

Quem é honesto de verdade, no final, é sempre amado, o que é desonesto é desprezado ou temido.